“A vida só é possível reiventada”, anuncia Cecília Meireles. Cada dia reclama perspectivas novas, um projeto diferente, alentos de ressurreição. Nasço a toda hora para morrer adiante e nascer de novo. Um périplo flutuante, instável, alternado. Se o tempo é a medida do movimento, importa que os jorros interiores o modulem em forma de mandala — numa ascendência espiralada. Os amanheceres pedem horas alvissareiras. Não basta acordar e abrir a janela, olhar a natureza e vigiá-la com atenção, mas inseri-la como parte da própria vivência. Colher uma flor supõe um esforço de pura sensibilidade. E sob o sol ou a chuva reconstruo as horas vindouras. Não é preciso muito para reinventar a vida. Depende apenas da nossa capacidade criativa.
Falo tudo isso porque um amigo me indagava em noite festiva: “Você hoje está triste; por quê?” Recorro de novo a Cecília Meireles: “Tenho fases, como a lua./ Fases de andar escondida,/ fases de vir para a rua.../” O mundo por vezes se mostra chocantemente superficial, postiço. Então me recolho em refúgios protegidos. Evito o excesso de exposição, fecho-me no claustro, opto pela vida monástica — algo conventual que me defende das possíveis intempéries. Em outros instantes, deixo-me envolver por uma melancolia advinda da fragilidade, a minha. E não tenho forças para recriar o dia. As palavras do amigo assaltaram-me como um alerta diante de aparências transitórias, quando a nostalgia se estampa nos olhos desprovidos de muros de defesa.
Reinventar a vida é reiniciá-la dia a dia. São os recomeços que ofertam energia à caminhada, um pouco aqui, um pouco ali, sempre um achado valoroso dentro de nós mesmos. Vasculhar o íntimo é a única maneira de reavivar utopias. A emoção depende de uma ordem interior. E essa ordem exige que os elos sensitivos estejam em harmonia. Que nada escape à deliciosa rotina, que dia e noite se completem na irreversível sucessão. A noite não representa a despedida do dia; simboliza o seu clímax, a reverência aos passados, as possibilitações futuras. Pelo menos para mim, pois é no silêncio da noite que sacolejo as vontades.
Mexo e remexo nos esconderijos. As coisas são indefiníveis na essência. O exagero de definições empobrece, pragmatiza o cotidiano, limita, reduz o que não pode e nem deve ser refreado. Sou um novelo de emaranhados, de linhas que não se sobrepõem, de cores e matizes diferentes, uns fios mais grossos, outros mais finos, todos independentes e, no entanto, interconectados nas dessemelhanças. Há altos e baixos que impulsionam o equilíbrio do núcleo existencial, triste ou alegre, ao embalo da diversidade do eu.
E Cecília Meireles sempre me acode, a voz da poetisa explode: “Já fui loura, já fui morena,/ Já fui Margarida e Beatriz./ Já fui Maria e Madalena./ Só não pude ser como quis.” Será que a máscara se colou ao rosto ao modo de Fernando Pessoa? Em que beco perdi a minha face? É a mesma Cecília Meireles que desenha o retrato: “Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o lábio amargo... Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida/ a minha face?”
Estou triste e alegre — nos interstícios do sol e da lua. As mudanças fazem parte de uma ciranda prenhe de circunvoluções. É necessário acumular sensações, sem receio de mergulhar no ermo reflexivo; do frenético redemoinho, extraio o que de melhor preservo. Cultuo uma dinâmica incansável, fujo de um polo para o outro. Atraem-me os contrários. E me espio intensa em todos os momentos, a transparecer o riso e a lágrima.
E naquela noite estava realmente triste.
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