domingo, 13 de junho de 2010

A DAMA DO PAÇO

Há ansiedade no seu caminhar. Ainda longe, uma batida ritmada aos poucos vem se chegando. Tambores, caixas, instrumentos de percussão. O coração acelera, pois não quer perder a oportunidade. Encontro com um pouco da sua história. Quando o sangue ferve, a identidade acontece – pensa ele. Máquina fotográfica em punho. Filme com sensibilidade, coração com emoção e olhos atentos a cada detalhe. Já próximo, uma parada dos instrumentos. Uma voz masculina destaca-se em estilo dolente e cadenciado:

Nós viemos da mãe África,

Somos presas da saudade.

Só amor em abundância

É quem dá a liberdade.

E o coro do cortejo se faz ecoar:

Só amor em abundância

É quem dá a liberdade.

Carlos aproxima-se. Um espetáculo de cores, bailado e encantamento quase hipnótico.

Nosso rei já tem coroa,

A rainha é um primor.

Quem quiser felicidade,

Vá atrás do seu amor.



Quem quiser felicidade,

Vá atrás do seu amor.

Mal começara a tirar as primeiras fotos é surpreendido: um beijo roubado. Coisas do carnaval pernambucano. Ousadia das ladeiras de Olinda.

– Meu príncipe, tira minha foto e tira minha solidão.

Ele fica meio atônito. Recobra um pouco do fôlego e, em tom jocoso e de continuidade, responde.

– O que lhe aflige, minha princesa? Tem imagem bonita, companhias formosas e uma dança encantadora. Eu é que peço socorro. A surpresa do seu carinho dá até susto de amor.

Lídia, uma morena nascida de um amor-folguedo, desses que só Momo sabe fazer, traz nas mãos uma boneca coroada. No corpo moreno, um vestido de cetim azul com miçangas prateadas, que no reflexo do sol acentuam o seu gingado. Parece a rainha Njinga Nbandi, de Angola. O rosto é adornado por expressivos olhos negros e um sorriso, que fala no requebro de palavras dengosas.

– Tudo isso, mas um coração vazio, meu príncipe – diz e prossegue – Minha calunga protetora e guardião dos segredos, Dona Isabel, mandou-me lhe dar um beijo.

Carlos, um mulato bem postado, era assaltado por dois calores, embora uma brisa em fuga com cheiro de maresia corresse por ali. O ritmo do batuque aquecia o cortejo com a percussão de tambores, alfaias, agogôs e caixas. A multidão aspergia gotas de energia no suor que molhava os calçamentos de Olinda.

Ao mesmo tempo, um folguedo particular fazia ferver as entranhas de Carlos que, nos seus 30 anos, tinha saúde pra muito mais. Uma calunga e um tambor, marcas maiores do maracatu, lhe assaltavam, enquanto as idades da certidão e do coração davam as cartas.

– Num brinca comigo, menina. Deixa tirar minhas fotos. Faz uma pose, vai. Abraça a calunga, pra eu saber quem é mais boneca...

– Nem fala assim, moço. Dona Isabel é a protetora de nós todos e de você também. O espírito da África e dos nossos antepassados lhe acompanham. Mãe me falou tudo isso antes de morrer.

Os músicos retomam o seu ofício toque de louvação, enquanto os brincantes parecem flutuar em evoluções em torno do rei, da rainha e da dama do paço, que voltara ao cortejo. À percepção e à objetiva de Carlos não escapam os trejeitos ameaçadores do caboclo de lança, que desferia olhares de ódio para Lídia.

Mais um silvo de apito e o mestre condutor do folguedo pára o desfile, entoando nova loa:

Cuidado, moça bonita,

tudo tem encanto e dor.

O ciúme do amante

é o risco do amor.

O eco fatalista do cortejo fazia o refrão:

O ciúme do amante

é o risco do amor.

Aos pedaços de conversas, aquele fotógrafo de paixão ia aprendendo e recebendo revelações. Sabia da existência do caboclo de lança – representação de um guerreiro das divindades africanas. Figura destacada do maracatu que, com indumentária multicolorida e adejante, chama a atenção por onde passa. Sem falar nos arcos virtuais desenhados no ar por sua lança e no som produzido pelos chocalhos que fazem simbiose com a dança evolutiva. Imagem diferente.

Aquele caboclo de lança era certamente diferente, principalmente, para Lídia. Fora amante de sua mãe. Parece que estava ouvindo-a dizer: “quando a gente ama, expõe o que está mais guardado na gente”, em resposta às censuras que fazia.

A menina não tinha dúvida. A mãe havia caído na arapuca do coração: amor por mendicância de amor. Ainda martelavam doidamente as palavras balbuciadas, quando definhava: “quem mata por amor é piedoso”.

Com tão pouca idade, aprendera que deveria se arriscar a devolver a dominação ou a liberdade na mesma medida como procedessem com ela. As investidas do caboclo de lança não lhe punham medo. Os desejos dele causavam repúdio. Ela sabia o que queria. Com um belo coração e uma meninice generosa, era o oposto daquele imbecil.

Enquanto isso, os componentes daquela nação maracatu, ainda agitados pelo último bater dos tambores, escutam o mestre que não tira o olho do caboclo de lança, que só tem gestos de raiva para Lídia, e solta mais uma loa:

Homem feio só dá susto,

muito mais, se odioso.

Só se salva quando for

educado e carinhoso.



Só se salva quando for

educado e carinhoso.

Lídia rindo volta ao seu assédio.

– Eu sou a Dama do Paço e meu destino é pedir. Quero uma paga pro meu beijo, meu príncipe.

– O seu jeitinho sensual de falar acrescenta tragédia ao meu desejo – disse Carlos, não se contendo, numa recaída de coisas do sangue, de preceitos da sociedade e da natureza formada.

– Minha Dama, quantos aninhos? – perguntou.

Quando ela disse dezessete, prosseguiu:

– Você quer muitas bonecas de cabelos ondulados, vestidinhos coloridos de seda da China, enfeitados com renda de Angola? – Assistindo o brilho de alegria nos olhos de Lídia, prometeu:

– Terá minha proteção e todas as bonecas. Basta ser dama só minha e largar os encantos da nação maracatu.

Uma fadiga de decepção lhe tomara a face, quando recobra a imagem que traz encalhada na memória: sua mãe se destruindo na fatalidade do amor prisão.

– Quem vê um homem declarando amor por uma mulher, já viu todos, não é Dona Isabel?

A calunga silente deixa que as loas do mestre façam malabarismo na lógica da convivência dos amantes.

Aí se engana quem pensa

“Homem é sempre igual!”

Aprender tudo outra vez

dá prazer, nunca faz mal.

Enquanto Carlos gira a objetiva para mais uma foto, a Dama do Paço, com sonhos de donzela enfeitiçada, volta ao corteja repetindo em uníssono:

Aprender tudo outra vez

dá prazer, nunca faz mal.

E Carlos prosseguia tirando fotos. Imagens aprisionadas, que lhe restariam como propriedade.

Conto de Cloves Marques (O conto “A Dama do Passo” foi classificado em 1º lugar no 3º Concurso de Contos Luís Jardim, da Biblioteca Popular de Casa Amarela, Recife-PE, 2005)

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