domingo, 13 de junho de 2010

O NASCIMENTO DE UMA MULHER

Peço licença ao tempo, que me concede procuração para outro tempo que há muito não vejo.

Estamos em pleno recreio, Grupo Escolar Delmiro Gouveia, dona Natércia Serpa de Menezes, do alto da sua maternal autoridade, é diretora com olhos para tudo de agradável que construímos, transverso à tábua das lei.

Cantamos o hino à bandeira nacional, “Salve, lindo pendão da esperança,...”, comando de dona Alice, ouvimos, os “prestem atenção” da professora Georgete em coisas capitais, “Pará/Belém, Maranhão/São Luís, Piauí/...”, e ainda jogamos futebol com bola de meia.

Às crianças são dados o aguçado poder de espiar e o livre desejo de observar. José Leal e nós, companheiros de peladas, nos deliciávamos com a bicicleta nova de Sônia. “— Bonita!”, “— Custou quanto?”, “Feita para mulher, nem tem quadro!”.

A um olhar mais atento, fez-se presente um filete líquido vermelho que escorre pela perna da menina da bicicleta e dos cabelos negros. “— Parece que me cortei!...”.

Enquanto o recreio corria pelo tempo, eu entendia que o sangue comprometido com a democracia também sabia libertar uma bela mulher das garras de uma menina sapeca.

Crônica de Cloves Marques (A crônica “O Nascimento de uma Mulher” faz parte do livro CRÔNICAS DO ENCONTRO, publicado em 1997, Recife-PE)

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