domingo, 13 de junho de 2010

A DIFÍCIL ARTE DE ESCREVER

Tenho medo da página em branco. Assustam-me as folhas desérticas à espera de palavras ainda não concebidas. O receio aumenta quando a consciência do dizer se instala, censura que limita a criatividade ou que faz latejar em veias pulsantes as ambiguidades de cada um. Escrever é um gesto de ousadia, revela um certo desatino, uma quase loucura. Afinal, que dirá o leitor diante de palavras com aparente nexo ou propositadamente desarticuladas? Faulkner (1897-1962) não se preocupava com regras de pontuação, menos ainda com explicitações temporais. O tempo era o presente que se metamorfoseava ao seu bel prazer. Joyce (1882-1941) explorava a musicalidade em uma escritura de altos e baixos, trechos autônomos e distantes de previsíveis linearidades. Machado de Assis (1839-1908) se enredava numa fina ironia; crítico acirrado, perscrutava os variados matizes de uma sociedade convencional. Guimarães Rosa (1908-1967) adotava um léxico próprio, com termos atávicos, criados por ele ou garimpados em pesquisa profunda, tais, que ensejou dicionários em torno da sua obra, notadamente “Grande Sertão: veredas”. Clarice Lispector (1920-1977) alertava: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. E Manuel Bandeira (1886-1968) decretou: “Estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado/ abaixo os puristas/ Quero antes o lirismo dos loucos/O lirismo dos bêbados/O lirismo difícil e pungente dos bêbados”.

Cada escritor busca sua libertação, assumindo o compromisso apenas de alongar-se em retratos simbólicos. Escrever é preciso. Quão complexo, todavia, ser original! E tudo parece acabar em repetições, em idéias que outros já dominaram, na arte quase impossível de inventar. A narrativa exige pessoalidade e um grande manancial de antevisões. Por isso, o escrever mexe com a alma, exaurindo-a até o limite do suportável. Só aí a palavra ganha a verdadeira transignificação. Lembro de Adélia Prado, quando comunica sua inquietação ao olhar para uma pedra e vê-la uma pedra — então, afirma não se encontrar na hora de escrever. É exatamente a subjetivação do olhar que estimula a inspiração. Uma pedra pode ser uma pedra, mas pode não ser. Melhor concebê-la uma metapedra e dela extrair o que a fantasia será capaz de inferir.

Um texto habilmente elaborado sugere, jamais impõe conclusões. Cabe à imaginação de quem lê a construção e a desconstrução do lido. Isto me recorda a acurada escuta das novelas de rádio na fase de criança, lá pelos idos de 1955. A sonoplastia levava a mundos surrealistas. As emoções se desdobravam além do plausível; tudo se desenrolava em contextos ocultos, nunca visualizados, mas infinitamente imagináveis. A literatura se aproxima desse cenário, o seu domínio é o do implícito: deve conter a sonoplastia do não visto. É exatamente o jogo de palavras numa afinada partitura que possibilita os devaneios da significação, devaneios particularizados em cada autor e em cada leitor. Uns veem de uma forma; outros, de outra — a narrativa, portanto, se multiplica em captações individuais, metaforicamente abstraídas.

Se a sonoplastia transmite sons tonitruantes ou melodiosos, a cenografia das palavras ondula entre o que deve ser dito e o que há de se omitir. A luta do escritor consiste na escolha. Quantas vezes levamos dias e dias para encontrar — muitas vezes sem sucesso — a forma adequada à frase inacabada! O escritor torturado nunca se satisfaz, um permanente angustiado, a perseguir o arremate que nunca chega. Ainda bem. A linguagem não se conclui, escapa de soluções simplistas, perdura ao longo do tempo numa caminhada eterna e eternizante. O pensamento, se possui estilo e beleza, não tem época. “Os Diálogos” de Platão são belos e consagrados na sua leveza artística. Nada os maculou nem os maculará, pois o presente, seja ele qual for, consolida-os como expressão estética.

Escrever reclama sofrimento, e muito. O prazer experimenta-se depois do texto estruturado. E, assim mesmo, ancorado em dúvidas, incertezas e inseguranças. Há uma aliança indissociável entre silêncios e frases em ruptura. Silêncios que selam mistérios e pausas da literatura. E qual a palavra do silêncio?

Texto de Fátima Quintas (Academia Pernambucana de Letras/ Academia Recifense de Letras.)
E-mail:fquintas84@terra.com.br

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